


Ao nascer, sua mãe jurava que ela não vingaria. Menina frágil, apática, aos dez anos mais parecia ter sete. Quieta, calma, vivia a cantarolar e gostava de rezar. Era comum vê-la sentada debaixo da goiabeira, nos fundos da casinha humilde onde morava, falando sozinha.
Certo dia, dona Maricota a surpreendeu benzendo uma galinha que fora jogada no valo para morrer porque estava adoentada. A menina tinha um galho de arruda nas mãos.
Dona Maricota xingou-a, mas ela, sorrindo, falou:
– Mainha, amanhã Chiquinha vai botar ovo.
Dito e feito. Apesar da tempestade que durara toda a noite, pela manhã a galinha aninhou-se e botou um ovo.
Com a idade lhe enrugando a face e sem importar-se em construir família, Lilica viu seu pai, sua mãe e dois irmãos partirem desta vida. Benzedeira afamada, acomodou-se num rancho que se deteriorava e, acostumada com “companhias” que só ela enxergava, fazia de seu dia um eterno servir. Filas às vezes se formavam, e ela, sempre a sorrir, tinha um chazinho, uma beberagem, uma reza para todos.
Não raras vezes as mães saíam da missa de batizado de seus rebentos e não voltavam para casa sem antes passar pela casa de dona Lilica para pegar o benzimento das brasas que tirava mau-olhado e quebranto. ¹ Até animais ela benzia, e eles se curavam. Buscavam-na para benzer casa, galpão, roça…
Mesmo em noites de geada, ela acendia seu lampião a querosene e saía à procura de ervas para a mãezinha que entrava em trabalho de parto. Sem contar as noites em claro a segurar a mão do agonizante que temia a morte, mas que adquiria forças com dona Lilica ao seu lado.
Mãe de ninguém, pois ilhos não tivera, seu coração adotou a vila, a cidade e a roça.
Famílias beneiciadas levavam seu nome e suas simpatias para além das fronteiras de seu vilarejo.
A idade, no entanto, não a poupou, e, sendo ela avisada pela “imagem” com que estava acostumada a conviver e que julgava ser de Nossa Senhora que sua hora havia chegado, sorriu e disse:
– Desde que para onde eu vá tenha um pé de erva-verde, uma fonte de água e a tua imagem, minha Santa Mãe, pode me levar contigo.
Após dias sem encontrar dona Lilica em casa, os vizinhos resolveram arrombar a porta, e foi grande o susto ao achar seu corpo “dormindo” tranqüilo, já sem vida. Havia poucas pessoas no velório, um monte de terra sobre o corpo e algumas flores da beira da estrada sobre tudo; foi o que restou de dona Lilica aqui na Terra. Nem missa mandaram rezar, pois isso implicaria pagar, e ela não deixara bens.
Do lado espiritual, dona Lilica acordou sentindo-se jovem naquele dia. Havia sol, e tudo era mais bonito. Abriu a janela e, orando aos Céus, pediu ao Pai para que não permitisse que ela fosse ali proibida de benzer. Fechou os olhos e viu-se transportar para um lugar que mais parecia um hospital, onde a dor, o gemido e o mau cheiro imperavam. Perto do portão havia um pé de perfumada erva e, aos pés da Virgem, uma fonte de água cristalina. Uma luz reascendeu a vida em seu olhar, e dona Lilica sabia o serviço a fazer. Levando suas rezas de leito em leito, iluminada pela sabedoria da bondade, ela aliviou naquele local as dores de muitos, por longos anos.
¹ – Mau-olhado: “Conseqüência da projeção do raio vermelho de natureza primária e penetrante, o qual resulta principalmente do acúmulo def luidos nocivos em torno da região ocular de certas criaturas. É uma condensação mórbida que se acentua na área da visão perispiritual, produzindo uma carga tão aniquilante ou ofensiva conforme o potencial e o tempo de fluidos enfermiços acumulados”. Ramatis. Magia de Redenção. Psicograia de Hercílio Mães. Limeira: Editora do Conhecimento.
Em seu túmulo, flores renasciam a cada dia, e, em seu casebre, há quem diga ver a imagem da Virgem regando as ervas que crescem a olhos vistos. Procissão de gente humilde se faz para rezar e pedir milagres ² para a alma de dona Lilica, que durante o dia socorre no plano espiritual e, à noite, desce para atender aos pedidos de benzimento para as crianças, as casas, os doentes, os animais e as roças.
“Na humildade, na simplicidade e na doação está o verdadeiro milagre. Na fé, na esperança e no amor está a luz que traz à Terra os espíritos iluminados que realizam em nós os milagres que Deus nos permite receber.”
Hoje, dona Lilica, com um galho de erva-cheirosa na orelha, abençoa-vos em nome do Pai, do Filho e da vossa fé. Amém.
Nota da médium: Esta história foi recebida em 1996, em mesa kardecista, durante o Evangelho de domingo, e foi a primeira manifestação da protetora, que mais tarde se apresentou como a preta velha vovó Benta.